segunda-feira, 22 de junho de 2009

Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa - (Resenha)




A Transcendência da Loucura em Primeiras Estórias

O mito é o nada que é tudo
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo.

Fernando Pessoa.

- Em que espelho ficou perdida a minha face?

Cecília Meireles.

O livro de contos intitulado “Primeiras Estórias”, escrito por Guimarães Rosa, foi publicado em 1962. A época é considerada como a Terceira fase do Modernismo brasileiro ao qual possui como expoentes, além de Guimarães, Clarice Lispector na prosa e João Cabral de Melo Neto na poesia. No contexto brasileiro surgia a Bossa Nova, o cinema novo e na política o Plano de Metas era inaugurado, fatos que servem como plano de fundo para o que ficou conhecida como a Geração de 45 na literatura.
O próprio autor cunhou o gênero “estória” como um conto breve. Sendo assim, para o estudo dessa obra vários recortes são possíveis: a relação entre o mítico e o místico, do sagrado e do profano, a violência do conto “Os irmãos Dagobé”, a metáfora da transcendência na “Terceira Margem do Rio” ou a loucura de contos como “Sôroco, sua mãe, sua filha.” Porém, ao decompor alguns desses termos e buscar sua definição percebe-se que certa relação entre alguns é possível. Isso me motivou a buscar não somente um recorte, excluindo outros pontos, mas sim, traçar parâmetros e relacioná-los de modo que se complementem.
A definição, portanto, de alguns dos termos tratados se faz necessário, mas a consciência de que a literatura não se limita a definições também, pois é a polissemia literária, entre outros fatores, que a faz ser presente como um fenômeno propriamente dito.
Primeiramente, mítico refere-se ao mito entendido como as narrativas baseadas em lendas e em tradições criadas para, em sua maioria, explicarem a criação do mundo ou seus fenômenos. Desta forma, o mito é “o nada que é tudo” na medida em que integra a realidade em si tentando manuseá-la e também é nada por ser internalizada no campo da ficção. O próprio conceito de “estória” do título do livro é referente ao campo do ficcional, das “narrativas curtas” que é sua definição.
Místico refere-se ao misticismo, ao sagrado e ao espiritual em que se acredita na experiência direta com uma entidade superior, do encontro do homem com Deus, entendido aqui como algo muito mais abrangente e não, de fato, personificado, e sim, transcendente. No livro “O Mundo de Sofia”, escrito por Jostein Gaarder, encontra-se a seguinte citação referente ao misticismo: “Uma experiência mística significa experimentar a sensação de fundir sua alma com Deus. É que o ‘eu’ que conhecemos não é nosso ‘eu’ verdadeiro e os místicos procuravam conhecer um ‘eu’ maior que pode possuir várias denominações: Deus, espírito cósmico, universo, etc.”
A transcendência significa “ir além” da forma, as experiências místicas são um estado particular de “auto-transcendência.” No campo literário, a catarse pode ser entendida como transcendência por ser a própria revelação de sentimentos, a purificação do ser.
A loucura leva à transcendência. O louco, ou portador de alguma particularidade, possuiu capacidades que o permite diferenciar-se em relação ao que é dito como “normal”. Essa diferenciação pode acarretar a marginalização do sujeito que não aceita seguir as boas normas de conduta. O marginal é aquele que está à margem, é o próprio excluído. Seja a marginalização escolhida, como no conto “A Terceira Margem do Rio”, ou impelida, como no conto “Sôroco, sua mãe, sua filha”, o individuo busca a solidão, voluntário ou não, como metáfora de transcendência. O canto dos excluídos da filha e da mãe de Sôroco é a transcendência dos excluídos, que mesmo ausentes, criam um elo místico com aqueles de seu convício anterior à exclusão. A terceira margem, a própria inexistência, é buscada pelo pai do narrador personagem que, sem motivo aparente, abandona a estrutura familiar e a corrompe, deste modo, não satisfaz os ideais impostos, sua atitude o coloca a margem, na terceira margem, no lago mítico de Guimarães, transformando a personagem na própria criatura mítica na medida em que vive na memória de seus familiares. O pai ainda se faz presente, mesmo durante sua ausência. A presença existe no sentimento de perda e de culpa do filho.
No conto “O Espelho” narra-se uma experiência, um relato, não de forma tradicional. O leitor, chamado de “senhor” no decorrer do conto, é convidado a questionar-se sobre a mentira da aparência humana. A linguagem usada é erudita, o que destoa dos outros contos do livro. O narrador, que parece conversar com o leitor, busca o “que há por trás de mim”, busca seu verdadeiro eu, não encarado como sua imagem no espelho, mas além da forma: “Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente.” A busca do verdadeiro eu relaciona-se com a experiência mística, a transcendência, nesse caso, significa perder as máscaras, perder a imagem de seu sósia animal, livrar-se das idéias que os outros lhe atribuem, dos seus interesses e de suas paixões. É preciso sentir-se “nu” para alcançar a essência. Tal discurso pode parecer louco, conforme a sociedade em que é inserida. A loucura é ideologia: considera-se louco aquele fora dos ideais, sendo o papel da ideologia, segundo Karl Marx, mascarar a realidade, somente um louco pode livrar-se da própria penúria e analisar fatos corriqueiros como a própria imagem em um espelho: “Se nunca atentou para isso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. E as máscaras moldadas nos rostos? Valem, grosso modo, para o falquejo das formas, não para explodir da expressão, o dinamismo fisionômico. Não se esqueça, é de fenômenos sutis que estamos tratando.”
Em que espelho ficou perdida a minha face? Difícil resposta. Mas sendo loucos, ou não, a busca do que está além da forma, da transcendência, da experiência mística relaciona-se com o mito que é ficção, que é estória, como as pequenas narrativas de Guimarães Rosa.

Yan.

Um comentário:

Calma disse...

Seu texto conseguiu retratar muito bem o modo como Guimarães Rosa atua nos contos deste livro... Tão difícil descrever isso!! Mas você se saiu muito bem, parabéns.